A imaturidade nossa de cada dia
Gostaria de ter escrito isso, mas, na minha atual falta de tempo, me ví compelido a republicar esse excelente artigo da Dra Norma Braga, depois de lê-lo em uma postagem do amigo Décio Simioni.
Com muita clareza, Norma nos explica como devemos agir em relação às diferenças de ideias, de pensamentos e de religiões, para estarmos bem no centro do que Jesus nos ensinou.
Numa época em que assistimos à intolerância em relação a diversos temas, a Dra Norma nos chama à realidade e nos dá um "puxão de orelhas" bastante oportuno e bem vindo.
Leia e faça a sua reflexão.
Fernando Marin
A imaturidade nossa de cada dia
Por: Norma Braga
Em novembro de 2012, alunos evangélicos de Manaus se
recusaram a apresentar um trabalho sobre religiões afro-brasileiras em uma
feira sobre cultura africana. Revoltados, armaram uma tenda fora da escola e
decidiram falar sobre missões evangélicas na África. Logicamente, o trabalho
não recebeu nota. Uma das reclamações adicionais foi a leitura obrigatória de
Jorge Amado, com suas referências ao homossexualismo.
Entristeci-me com as implicações do episódio. Não duvido da
sinceridade dos meninos, nem de sua fé, de modo algum. Eles acertaram ao
identificar tanto as religiões afro-brasileiras quanto o homossexualismo como
inseridos em um espírito de antítese à fé cristã. Mas faltou-lhes um terreno
bíblico sólido para lidar sabiamente com essa antítese e reagir de um modo que
correspondesse ao papel que Jesus espera de nós como agentes transformadores da
cultura.
Antes de tudo, preciso afirmar que eles pecaram ao
desobedecer às ordens dos professores. Diz Calvino, em consonância com a Bíblia
(Atos 5.29), que só podemos desobedecer às autoridades caso elas nos ordenem a
desobedecer a Deus. Embora escorados em uma cosmovisão não-cristã, como aliás é
o estado de toda a educação secular hoje, os professores não lhes ordenaram que
pecassem ao pedir tal trabalho, nem ao passar-lhes a leitura de Jorge Amado.
Por quê? Porque é possível trabalhar com conteúdos não-cristãos sem aderir a
eles, simplesmente. Essa é uma realidade que a igreja brasileira precisa
enxergar com urgência. Toda religião pode ser analisada à luz de seu impacto
cultural, e mesmo cosmovisões apóstatas têm seus momentos de verdade. Com o
tema em mãos, os alunos poderiam ter comunicado algum aspecto positivo nas
manifestações culturais e literárias analisadas; e, ainda que não aceitassem
nada de positivo nelas, poderiam ter recorrido ao expediente de citar
terceiros. Em seguida, acrescentariam uma "opinião pessoal" sobre o
assunto, inclusive apresentando informações sobre as missões africanas. Desse
modo, não teriam desobedecido, mentido nem ferido suas consciências, e ainda
comunicariam aos professores e a todos os participantes da feira alguma verdade
sobre a fé cristã. Ouvi mais de um relato de estudantes cristãos que adotaram
esse procedimento, com ótimos resultados.
Em vez de procederem à revolta aberta, idealmente os alunos
teriam sido despertados por seus pais e pastores para o aspecto louvável da
iniciativa da escola, que consiste no seguinte: por décadas a fio, o
pressuposto de todo o ensino institucional tem sido materialista e ateu; quando
alguém propõe que se fale de determinada religião no ambiente escolar, está
quebrando uma gigantesca barreira e indiretamente cavando espaço para que os
estudantes também falem de suas crenças. Onde foi apontada uma ordem abusiva e
intolerável, havia uma abertura para a pregação do Evangelho — que
infelizmente, por imaturidade pessoal e teológica, deixou de ser percebida.
A chave para a compreensão dessa diferença fundamental na
segunda atitude em relação à primeira não é um argumento, mas sim uma postura
interior, que poderia ser descrita assim: em vez de esperar que o mundo aja em
conformidade com a Palavra de Deus e rebelar-se e retirar-se (Jo 17.15) quando
isso não ocorre (passividade e ira), nós salgamos o mundo (Mt 5.13), sabendo
que todos os que têm algum contato conosco na vida são alvos potenciais da
graça de Deus (atuação e amor). No primeiro caso, fechamos os olhos para a
cultura e para as percepções alheias, ignorando tanto pecados quanto momentos
de verdade; no segundo, trabalhamos com a cultura, mas sem nos deixarmos
submergir por ela. Se a preocupação dos alunos era apologética, eles deveriam
ter sido orientados para a compreensão de que não há apologética sem diálogo. A
tenda fora da escola simbolizou o desejo de falar sem ouvir em um espaço
"neutro": pura fantasia, que ainda é bastante atuante na alma da
igreja brasileira, infelizmente, mesmo entre adultos e até líderes, que
deveriam manifestar uma postura mais madura.
A Bíblia nos fornece um exemplo emblemático de um tratamento
equilibrado e eficaz da cultura nas palavras do apóstolo Paulo. A consciência
da presença da cultura no próprio ato de evangelização é uma constante nele. Em
Atos 17, uma das passagens bíblicas mais interessantes do Novo Testamento,
atestamos a capacidade de adaptação do apóstolo na apresentação da mensagem. Na
sinagoga (Atos 17.2-4), diante de judeus eruditos, seu ponto de partida é a
cultura comum daquele ambiente, ou seja, o conhecimento das Escrituras, e,
partindo disso, a identificação de Jesus como o Messias. No mesmo capítulo, já
no Areópago (Atos 17.19-34), Paulo inicia sua explanação de um modo totalmente
diferente com os gregos que ali estavam — filósofos estoicos e epicureus —, mas
imbuído do mesmo princípio: ele parte da cultura comum daquele ambiente para
apresentar o mesmo Cristo como o Messias, a quem Deus ressuscitou dos mortos.
Ele começa com a menção a um “deus desconhecido”, aparentemente distante de
todas as excessivas humanizações atribuídas aos deuses conhecidos que reinavam
em Atenas, para falar do Deus da Bíblia, que não precisa dos homens (os deuses
atenienses precisavam de ofertas constantes) nem habita em templos. Ele começa
a combater a idolatria reinante ali partindo de algo que já estava presente
naquela cultura. E, embora a maioria dos presentes tenha zombado dele — pois
falou em “ressurreição dos mortos” a um público que só queria saber das
“últimas novidades” e provavelmente não levava a religião a sério ao ponto de
crer em milagres — , várias almas foram salvas naquele dia.
Paulo se utilizou magistralmente de conteúdos da cultura
grega, sem ceder um milímetro nas considerações acerca da verdade do Evangelho.
Podemos seguir seu modelo. Mas, se ignoramos os dados da cultura e nos fechamos
pada a voz do outro, acabamos desprezando a humanidade que nos é comum.
Acreditamos assim que estamos acima da cultura, como se vivêssemos fora do
tempo, e experimentamos uma espiritualidade fechada para os desafios seculares.
Nesse arremedo de santidade, equiparamo-nos a um ídolo (fora do tempo, da
cultura, da humanidade), tornando-nos soberbos como deuses, além de ignorantes
quanto a nosso próprio acolhimento inadvertido de influências culturais na
mensagem evangélica.
Venho testemunhando nos últimos tempos, com preocupação
crescente, a adesão, por pessoas cristãs, a um tipo de conservadorismo cuja
postura dominante é a desse afastamento murmurador e autoprotecionista. Com
grande frequência, o conservador — ou seja, aquele que acalenta os valores
cristãos remanescentes na cultura, lamenta a galopante descristianização do
Ocidente e deseja o atraso ou a interrupção desse processo — se comporta desse
modo opaco, recusando-se a compreender e assumir temporariamente o olhar do
outro para melhor comunicar sua cosmovisão. Entendo que um não-convertido se
sinta assim, pois só o cristão verdadeiro pode assumir sua missão de
"estar no mundo sem ser do mundo", ou seja, comprometer-se com o bem
ao mesmo tempo em que se guarda do mal (Tg 1.27). Mas, enquanto o esquerdista
inventa uma moralidade própria para sentir que age em nome do amor (e promove
destruição, de modo consciente ou inadvertido), muitos conservadores se
refugiam na memória de tempos mais morais e se entrincheiram ali, como se o
máximo a fazer fosse alvejar a bagunça do mundo com cusparadas.
Que o leitor não se engane: eu sou conservadora. Mas aprendi
na carne, com dores, que não posso reproduzir acriticamente um comportamento
comum de meu meio. E um dos mais constantes é uma consequência do
autoprotecionismo: a ira pecaminosa. O conservador cristão que coloca seu conservadorismo
no lugar das ênfases bíblicas adota a ira como modo preferido de reação, ou
seja, vive irado, por indignar-se com a malignidade do mundo. Mas essa certeza
bíblica deveria suscitar em nós apenas isso? A indignação, isolada, é a
resposta emocional de quem espera que o mundo naturalmente obedeça a Deus, sem
nossa intervenção como anunciadores de Cristo. E quem não consegue aceitar a
realidade do pecado se revela incapaz de se posicionar redentivamente, pois
percebe o incrédulo como um alvo primordial de ira (humana!), não de pregação.
Trata-se de um desvio monstruoso na cosmovisão que o localiza mais perto do
farisaísmo que de Cristo. Afinal, se o pecado alheio só suscita surpresa e
indignação, em vez de compaixão, provavelmente a santidade é superficial e
exteriorizada, como a dos fariseus.
Preciso explorar reações comuns a outros episódios, também
recentes. No dia 28 de fevereiro deste ano, em São Paulo, por iniciativa do DA
da Faculdade de Direito, foi realizado na Universidade Presbiteriana Mackenzie
um debate entre o dr. Guilherme Schelb, jurista, e o deputado e militante LGBT
Jean Wyllys. Jean Wyllys? O nome causou rebuliço. Dedos acusatórios se voltaram
contra os líderes da instituição. Na tímida publicidade do evento, alguns
chegaram a enxergar uma estratégia de “abafa”, como se um debate público em uma
universidade de peso pudesse ser ocultado... enquanto outros foram qualificados
como “heróis” por divulgarem o acontecimento. Os mais afoitos denunciaram um
suposto processo de liberalização da Igreja Presbiteriana do Brasil... Isso diz
muito sobre o estado da igreja cristã protestante entre nós, ainda regida sob o
mandato inconfessado do não-vejo, não-ouço, não-falo.
Mas a questão merece ser examinada. Que dolo houve em
receber em suas dependências um militante LGBT para um debate? Há anos o
Mackenzie recebe personalidades não-cristãs para discutir temas das mais
variadas áreas. O pecado de um homossexual seria tão grave ao ponto de
impedi-lo de comparecer às instituições cristãs? Mais grave que o ateísmo ou
que a idolatria? Pensar (e sentir) assim não é bíblico. Se a ideologia LGBT tem
alcançado projeção em todo o mundo ocidental, estando grandemente em desacordo
com o que a Bíblia nos ensina, não só podemos, mas devemos abordar o assunto em
público. E uma universidade cristã é o ambiente ideal para isso, pois a
cosmovisão bíblica, se bem desenvolvida, possibilita uma base sólida para
examinar todos os temas em pauta na sociedade.
O mesmo escândalo ocorreu entre antiesquerdistas confessos
quando o Mackenzie convidou certos preletores para um debate no dia 13 de
novembro. Marina Silva e Ariovaldo Ramos, entre outros, estiveram no campus de
Campinas para o V Simpósio de Ética e Cidadania. O chanceler da instituição,
rev. Davi Charles Gomes — em quem eu confio o suficiente para dizer com
segurança que não é de esquerda —, fez o contraponto tanto de Ariovaldo quanto
de Marina. Infelizmente, não estive lá para fornecer minhas impressões sobre
debates e debatedores. Mas não pude deixar de ouvir mais uma vez as vozes dos
contrariados que, diante da notícia, de longe, teceram seus prognósticos
sombrios sobre a instituição e a denominação.
De que lugar exato bradam os desgostosos? Muitos não têm uma
cosmovisão bíblica adequadamente formada; neles, é instintiva uma aversão ao
contato com descrentes, por purismo farisaico ou medo do confronto. Outros não
entendem que universidade não é igreja; em uma igreja, pressupõe-se que o
convidado para falar sempre esteja em consonância com os conteúdos da fé
cristã, pois, sendo ecclesia (de onde se origina o termo) a reunião dos remidos
por Cristo, o pregador se expressa do púlpito com autoridade espiritual. Já a
universidade, mesmo confessional, deve abarcar todos os lados das questões
públicas. E isso pressupõe ouvir até mesmo o pior inimigo da fé cristã, como o
oponente declarado Richard Dawkins, convidado por muitas universidades
confessionais americanas para debater com cientistas cristãos. Se você não é
contra a presença de Dawkins em debates nas universidades cristãs americanas,
não pode ser contra a presença de militantes gays ou de esquerda no Mackenzie.
Pelo contrário: nesses casos, a maturidade cristã consiste em compreender que o
contraditório está por aí, nas ruas, e trazê-lo para nosso meio, com cristãos
aptos para enfrentar seus desafios, não passa de nossa obrigação — por amor a
quem se deixa seduzir pelos encantos do pensamento apóstata.
“Mas Norma”, imagino a objeção do leitor, “a esquerda quer
ajudar a implantar leis no Brasil que impeçam a liberdade cristã de expressão.
É um contrassenso receber LGBTs e esquerdistas para falar”. Seria um
contrassenso, sim, caso não devêssemos obedecer a Jesus. Por acaso Jesus diz
que devemos pagar aos outros na mesma moeda? Não; pelo contrário, ele afirma:
“Tudo o que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós também a eles” (Mt
7.12). Além de trazer à baila pontos controversos da atualidade — algo que
jamais deveríamos estranhar —, a universidade deu a essas pessoas um excelente
exemplo de comportamento cristão. Algo que poderá lhes ser lembrado da próxima
vez que erguerem a voz para defender os projetos de lei autoritários que estão
em voga ou que proibirem os cristãos ortodoxos de falar nas arenas públicas.
O problema não é pequeno. A quem suspeita de que estou
apenas preocupada com a reputação de instituições e líderes presbiterianos,
devo lembrar que urge, mais que nunca, colocar sobre a mesa um dado
inequivocamente identitário do discipulado de Jesus. Se agirmos conforme o
mundo, seremos pisados. Se devolvermos o desprezo com que somos tratados, qual
será nossa utilidade nesta cultura? Nossa época é de um proselitismo arrogante
nos mais variados setores, em geral travestido de neutralidade. A palavra
"tolerância" nunca foi usada tão seletivamente: infinita para
materialistas e relativistas, zero para religiosos e conservadores. Quando
contam com algum poder coercivo, representantes desses setores não hesitam em
usá-lo. Enquanto o Mackenzie sempre convidou cientistas ateus para debater com
cientistas cristãos em eventos sobre darwinismo, a Unicamp cancelou de
véspera², em outubro deste ano, o I Fórum de Filosofia e Ciência das Origens,
do qual participariam evolucionistas e criacionistas. Pressão estudantil? Não:
pressão indignada dos próprios professores da universidade, que não queriam a
presença de criacionistas em seu espaço sacrossanto. Um deles chegou a
vociferar: "Que façam isso numa igreja".
Vamos responder na mesma moeda de ira ou continuar dando e
aprovando exemplos de amor cristão? A escolha é sua — mas, antes de falar ou
agir, tenha a certeza de conformar-se ao padrão bíblico.
Norma Braga Venâncio
Doutora
em literatura francesa pela UFRJ e mestranda em teologia filosófica pelo Centro
Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Desde 2005, escreve em seu blog
(www.normabraga.blogspot.com) sobre cosmovisão cristã, teologia, arte e
política. É casada com André Venâncio e reside atualmente em Natal.
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